- Aonde vai, pássaro, que tem tanta pressa?
- Ora, menina, mas não é claro? É inverno e vou atrás do meu amor.
- E onde está esse seu amor?
- Longe. Onde os dias são quentes, o céu é azul e as flores riem suas mil cores para quem quiser ver.
- E como é sua amada, pássaro?
- Mas não é claro, menina? Ela é flor: Bela, delicada, cheia de cor e dor e amor. Ela cheira a primavera, se move como brisa e seu riso tem gosto de saudade.
- Por que não está com ela agora, pássaro?
- Porque nem sempre a gente pode ter tudo o que quer, menina. Veja bem, eu a queria, a queria mais que a qualquer outra coisa, mas um pedaço de mim voou para tão longe que o perdi de vista... E eu precisava desse pedaço, menina, precisava desse pedaço para ser. Assim, tive que vir... Tive que vir para recuperar de mim aquilo que se perdeu. E agora que me encontrei, menina, volto para ela, como prometi que faria... E volto limpo, novo, renascido.
- Por que volta para ela, pássaro?
- Ora, menina, volto porque a amo!
- Se a ama, por que partiu?
- Menina, menina, mas já não lhe expliquei? Olhe aqui: Preciso de mim para existir, mas preciso dela para viver. Entende a diferença, menina? Sem ela, sou pedaço vazio, casca oca, metade dolorida. Sem mim, sou um turbilhão de sentimentos sem morada, sou alma perdida, sou poesia e sentimento desperdiçados. Entende?
- Acho que entendo, pássaro, acho mesmo que sim...
- O que foi, menina?
- Nada, nada. Lembrei de alguém... Alguém que deixei longe, onde a brisa é mansa e o ar cheira a esperança.
- E você vai voltar para ela, menina, quando seu tempo chegar?
- Vou, pássaro. Vou porque a amo. Vou porque sem ela eu sou metade dolorida.
- Pássaro não, menina: Beija-flor. Vê? Sem minha flor, nem nome tenho. E qual o seu nome, menina?
- Muda a cada dia, Beija-flor. Hoje eu queria que fosse Chuva, para viajar pelos céus e escorrer pelo rosto dela até alcançar os lábios doces.
- Então, para mim você é Chuva. Chuva de fim de tarde, repleta de amor... Mas que poema você é, hein, menina?
- É culpa dela, Beija-flor... Mas vai, vai ver a sua amada que está na sua hora, deixa eu me perder nessas páginas empoeiradas e no passar arrastado dos ponteiros do relógio. Vai ser feliz, Beija-flor.
- Vou. Mas não se preocupa, menina-chuva... Mando um beijo pra sua flor enquanto ainda não é sua hora de batucar a janela dela. Vamos ser felizes que, de perto ou de longe, o essencial é amar.
"E, assim, no teu gosto eu fui chuva
Jeito bom de se deixar viver
Nada do que fui me veste agora
Sou toda gota, que escorre livre pelo rosto
E só sossega quando encontra tua boca
E, mesmo que eu te me perca,
Nunca mais serei aquela que se fez seca
Vendo a vida passar pela janela"
(Quando fui chuva - Maria Gadú)