sexta-feira, 6 de abril de 2012

O que se perde enquanto os olhos piscam...


Pauta para o Bloinquês.

Acordo. Que dia é hoje? Em que mês estamos? E por que minha cabeça lateja tanto? Suspiro. Provavelmente, mais uma noite de bebedeira. Mais uma saída longa demais com amigos irresponsáveis demais. Mais um dia qualquer em uma vida vazia. Levanto devagar, as paredes rodando ao meu redor. Meus braços doem. Minhas costas estalam. As engrenagens de meu cérebro rangem ao funcionar, parecendo estar a beira de um colapso. Espreguiço... Provavelmente dormi de mau jeito. Ninguém ao meu lado entre os cobertores amarrotados da cama de casal. Sorrio, agradecido. Ao menos não preciso me preocupar em enxotar estranhos indesejados da minha casa e da minha vida. Meus joelhos reclamam de meu peso, mesmo que meus pulsos pareçam anormalmente finos. Bambeio. Com o apoio de uma parede, me ponho a caminhar. A casa está silenciosa como apenas às - confiro o relógio - seis e meia da manhã poderia estar. Ao alcançar a cozinha, percebo que minha vista está turva e nublada. Por quê? Não sei dizer. Algum canto vago e obscuro de minha mente me repreende por não ter pego os óculos ao levantar da cama, mas afasto logo o pensamento do meu consciente. Nunca usei óculos. Devo estar apenas cansado.

Paro no meio do ambiente - iluminado demais para o meu gosto - e me pergunto em qual dos muitos armários estão as canecas. Encontro uma estacionada sobre a pia e decido usá-la. Provavelmente esqueci de guardá-la ao chegar da festa na noite anterior. Este é mais um dos tantos positivos de morar só - ninguém reclama quando esqueço de colocar as coisas no lugar. O café ainda está quente na garrafa térmica. Franzo o cenho, tentando lembrar de quando o fiz. Nada me ocorre. De fato, percebo, enquanto despejo o café na xícara, não tenho qualquer lembrança da noite anterior. Sorrio com o canto da boca. Vodka - a explicação mais simples. Fecho os olhos e inalo o aroma inigualável de café fresco. Levo a xícara aos lábios e o provo assim mesmo, preto. Ao engolir, um novo estranhamento: Desde quando adquiri o gosto por café preto? O gole que tomei foi instintivo, como que por hábito, como se o fizesse todos os dias, mas o fato é que nunca gostei de coisas amargas. Ao abrir os olhos, encontro um par de íris azuis a me fitar atentamente. A xícara cai. O café se espalha pelas pedras brancas do piso. Meu peito arde.

"Não se assuste, por favor", a voz da senhora é suave, como se tentasse acalmar um animal acuado. É exatamente assim que me sinto. "Você lembra de mim?"

Sacudo a cabeça, tentando encontrar a minha voz e os movimentos das minhas pernas. Sinto uma gota de café se alojar no peito nu do meu pé e queimar a minha pele. Ainda assim, não consigo me mover. A senhora sorri, rugas de riso se formando nos cantos de seus olhos. Ela estende uma mão para mim, mas para ao notar o pânico em meus olhos. Sua expressão se entristece.

"Meu nome é Rita", ela anuncia, um tom de emoção na voz. "Somos casados há vinte e cinco anos".

Por um momento, a afirmação me parece absurda. Afasto os lábios para soltar uma gargalhada incrédula, mas o som se agarra com firmeza às paredes da minha garganta e eu engasgo. De repente, percebo as rugas que curvam a pele das minhas mãos. As pontas dos meus dedos tocam o topo da minha cabeça e encontram tufos ralos de cabelo e uma superfície lisa, fria. Engulo em seco. E, como um fragmentos de um quebra-cabeça, imagens soltas se esgueiram para fora do baú do esquecimento: Uma moça bonita, de cabelos negros e olhos azuis, vestida de branco, entrando na Igreja; uma casa de paredes amarelas e gerânios no jardim; um garotinho de cabelos louros tão parecidos com os meus jogando bola na sala; uma caneca atirada ao chão, com raiva; Bernardo - quem é Bernardo? As cenas se amontoam, sem fazer qualquer sentido. Imagens de uma vida passada, talvez. Sinto as lágrimas escorrerem pelas minhas bochechas e a senhora - Rita, minha esposa - se aproxima com passos hesitantes, passando os braços pelos meus ombros.

"Como?", pergunto, com a voz rouca e as mãos trêmulas. Ela afaga minha nuca e me beija o queixo.

"Alzheimer", ela sussurra, e eu sinto suas lágrimas na gola de minha camisa. Uma cerca pintada de branco; um relógio quebrado na parede da sala. Onde foi toda a minha vida?

"Foi embora", eu choramingo, feito menino que acaba de perder o cãozinho.

"O quê?", ela pergunta, afastando-se apenas o suficiente para me olhar. Sinto segurança em seus olhos, mas ela não passa de uma mera desconhecida. Dói.

"Minha vida", respondo, tão baixo que quase não posso me escutar. "Foi embora, mas eu nunca disse adeus".

Ela entrelaça os dedos aos meus. Eu resisto ao impulso de me afastar. Meu corpo treme. Ela sorri novamente, fracamente, docemente.

"Podemos fazer uma vida nova hoje", ela propõe. E eu, no auge do meu medo, concordo com a cabeça. Ela espera. Só uma pergunta me ocorre:

"Onde ficam as xícaras?"

3 comentários:

Drica disse...

Você arrasa!! Assim não dá!! O texto está fantástico. parabéns.
bjsss

Tereza disse...

Seu texto esta divino.fantastico.maravilhoso.bjs

Bird disse...

e o conto começou de um jeito e você deu um rumo completamente diferente do que eu havia imaginado. muito bom.
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