sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

"and if you wanna cut yourself, remember that I love you..."

Ela fez uma pausa ao terminar de subir o último lance de escadas, olhando ao redor com certa cautela. A porta branca diretamente em frente a ela tinha um caprichado número 312 gravado em uma pequena placa de bronze reluzente. O corredor estava deserto e silencioso - o que era perfeitamente compreensível já que eram quase quatro da manhã. A única pessoa com quem topara em todo o edifício fora o porteiro, que cochilava em sua pequena cabine, o corpo pendendo perigosamente para frente - ela não se incomodara em acordá-lo.

Adiantou-se com passadas largas e decididas, as tábuas do assoalho rangendo miseravelmente sob as solas de seus All Star. Não parou até alcançar a porta marcada com o número 309. Encarou a porta por alguns momentos, como se esperasse que ela pudesse se abrir por mágica... Não aconteceu. Ela hesitou. Então, ergueu a mão e deu batidas suaves na madeira com os nós dos dedos. Nenhuma resposta. Tentou novamente, dessa vez com um pouco mais de força. Contou os segundos. Dez... Vinte... Vinte e cinco... Um minuto. Ergueu o punho e socou a porta com o máximo de força que encontrou.

"Amy!", gritou, sem se importar com a possibilidade de acordar os vizinhos. "Amy! Eu sei que você está aí, então é melhor abrir logo!"

Mais uma vez, nenhuma resposta - nenhum riso, nenhum gemido, nenhum "Peguei você!". Talvez... Talvez aquilo não fosse brincadeira. Mas a sua cabeça latejava a cada vez que ela pensava nessa possibilidade. Não, não... Ela preferia que fosse apenas uma brincadeira, mais uma piada sem graça da amiga. Tinha que ser. Porque qualquer outra razão para mantê-la trancada em seu apartamento por três dias sem atender o telefone não poderia ser uma boa razão.

Ela apalpou os bolsos do casaco - estavam vazios, exceto pela embalagem do chocolate que ela comera no ônibus. Correu as mãos pelos bolsos dos jeans. Nos bolsos traseiros, não havia nada além de sua identidade, algum dinheiro e o ingresso amassado de qualquer jeito para  Mamma Mia! - ela e Amy deveriam ter passado a noite juntas, primeiro assistindo o espetáculo, depois bebendo até o sol raiar, comemorando os seus aniversários, um seguido ao outro. Mas a garota simplesmente não aparecera e não se dera ao trabalho de lhe mandar uma mensagem de texto, um bilhete ou o que fosse desejando um feliz aniversário. Isso quase lhe dava vontade de dar meia-volta e ir embora dali - seria mais que justo ignorá-la em seu aniversário também, certo? Mas então seus dedos tocaram a superfície fria da chave no fundo do seu bolso esquerdo e ela suspirou.

Ao tirar a chave do bolso e enfiá-la na fechadura do número 309, percebeu, com um choque, que suas mãos tremiam. Respirou fundo, tentando se convencer de que tudo que encontraria ao entrar no apartamento seria sua melhor amiga dormindo pacificamente na cama, com uma garrafa de tequila ao lado e a televisão ligada. Era sempre assim, não era? E foi com esse pensamento quase reconfortante na cabeça que ela girou a maçaneta e empurrou a porta. As dobradiças rangeram. O apartamento estava escuro.

Ela deu um passo para dentro e tateou a parede ao lado em busca do interruptor. Quando a luz se acendeu, quase desejou não tê-lo feito - a sala estava revirada. As almofadas do sofá haviam sido rasgadas e o enchimento estava espalhado pelo chão, a televisão estava jogada de qualquer jeito a um canto, as cadeiras haviam sido violentamente atiradas contra as paredes, os livros tinham páginas arrancadas e manchas de tinta de canetas quebradas. Ela engoliu em seco. Não deu-se conta de que estava correndo até alcançar a porta do quarto - estava vazio, a cama estava feita, todos os objetos estavam em seu devido lugar. A porta do banheiro, no final do corredor, estava fechada - e um fiapo de luz escapava por baixo dela.

Adiantou-se. Não precisou bater para saber que não obteria resposta - simplesmente girou a maçaneta. Estava destrancada. Por um breve instante, titubeou... Então, empurrou a porta para dentro. Quase pensou que estivesse tudo bem - os cosméticos sobre a pia estavam em ordem, não estavam? A escova de dentes e o pente estavam nos lugares certos. O espelho do armário estava intacto. Mas a banheira estava cheia e a água transbordava, escorrendo lentamente pelo piso. Água vermelha. Um braço pendia, pálido, da lateral da banheira.

Ela atirou-se no chão ao lado do corpo mole da garota - seu rosto de cabelos escuros pendia de uma borda, seus olhos fechados com tranquilidade como se ela houvesse passado os últimos dias dormindo. Em uma das mãos, uma lâmina pequena e afiada repousava pacificamente, quase inocente. Seu outro braço, a garota percebeu, era a fonte do sangramento e estava afundado na água suja. Ela estremeceu ao enfiar a mão ali dentro e puxar aquele braço magro e frio para fora - Amy havia entalhado letras na própria carne. Perfeição, era o que diziam as letras. Ao erguer os olhos para o rosto da amiga, percebeu que os seus olhos estavam abertos e a fitavam com certa curiosidade.

"Ah, Amy...", ela murmurou, encostando sua testa à da garota e permitindo que lágrimas frustradas escorressem pelas suas bochechas. "Que droga!"

"Eu sei...", a voz da garota soou baixa, fraca, quase sem vida - os dedos que seguraram a sua mão, no entanto, não poderiam ter mais força. "Feliz aniversário..."

"Idiota... Queria que você soubesse que adoro o jeito que você sorri", ela choramingou, tateando o bolso com a mão livre em busca do celular, discando desajeitadamente o número da emergência, sem desviar os olhos da amiga. "E que odeio essa coisa te consumindo... Que sinto falta te ver feliz. Eu quero a minha Amy de volta. Por favor, por favor, promete que ela vai voltar se eu esperar... Eu posso esperar para sempre se souber que ela vai voltar... Ela era perfeita para mim.".

Um vestígio quase imperceptível de um sorriso espalhou-se pelos lábios pálidos de Amy e a outra riu, um riso baixo e fraco. Abraçaram-se, meio desajeitadas, e ela puxou o corpo da amiga para fora da banheira, enrolando-o em uma tolha seca pendurada ao seu lado. A mão dela não soltava a sua, como se estivesse agarrada à vida, à esperança. E talvez estivesse mesmo... Talvez ela finalmente estivesse lutando.


"Pretty, pretty, please, don't you ever, ever feel
Like you're less than fuckin' perfect
Pretty, pretty, please, if you ever, ever feel
Like you're nothing, you're fuckin' perfect to me..."

(Fuckin' Perfect - Pink)

Texto escrito para a  54ª edição musical do Projeto Bloinquês.  (:
Conto baseado no clipe de Fuckin' Perfect - Pink

3 comentários:

Desirée disse...

aiiiiiiiiii, me deu até uma dor por dentro!
cada um é perfeito de sua própria maneira.

Rafa Sady disse...

Eu DISSE que vc tinha o dom de fazer as pessoas chorarem u.ú
Lindo demais, abri um oceano aqui... Mas vc ja sabe que tudo que escreve é lindo (:
:*
P.s.: Eu te amo

@juusep disse...

Ah own que fofo *-*