terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Morte aos deuses da chuva!

(Pauta para o Bloinquês)


Ela não queria entrar no café. Saíra de casa tarde demais, na inútil esperança de que, se corresse, talvez conseguisse pegar o ônibus das 13:25. E talvez esse ônibus a deixasse na rua dele cedo o suficiente para que os  seus pezinhos apressados vencessem a distância até o prédio antigo e baixo rapidamente... Tão rapidamente que ele sequer notaria os poucos minutos de atraso. Ela sabia que ele não tolerava atrasos. E sabia que, exatamente por esse motivo, seu plano nunca poderia funcionar. O azar lhe perseguia desde a infância. "E que morram os deuses que fizeram chover", ela resmungava sem parar.

Ainda assim, a chuva lhe pegara de surpresa e ela não tivera escolha exceto abrigar-se no primeiro café que lhe apareceu. O ambiente era aconchegante, apesar de estar quase vazio àquela hora do dia. Música ambiente lhe acariciava os ouvidos e o aroma forte de café fresco lhe implorava para sentar por alguns minutos e pedir uma xícara. Ela desviou o olhar para a rua lá fora, para as gotas finas da garoa... Não saberia dizer quando tomou sua decisão, mas pegou-se sentada em uma mesinha próxima a uma das grandes portas do café. Sorriu para si mesma - quando fora a última vez que fizera algo tão espontâneo? Não podia lhe fazer mal.

A garçonete que se aproximou era jovem e sorridente, parecendo flutuar alguns centímetros sobre o chão tamanha era a sua alegria. Ela parou ao lado da mesa e estendeu-lhe um menu, sem pronunciar uma palavra sequer. A outra rejeitou o menu com um aceno curto da mão - econômica como sempre.

"Um café preto, por favor", foi sua ordem, seguida por um sorriso breve.

A garçonete acenou vezes demais com a cabeça antes de se afastar em direção ao balcão. A jovem olhou novamente para o lado de fora, analisando com olhos minuciosos a cidade cinzenta. Poucas pessoas se atreviam a desafiar a garoa, como se uma súbita crença houvesse se espalhado pelos becos da cidade de que isso apenas aumentaria a fúria dos deuses. Ela suspirou, correndo os dedos pelos cabelos curtos e ruivos. "Danem-se os deuses", pensou, revirando os olhos. "Pelo visto, tudo o que essa maldita entidade superior quer é a minha infelicidade. Ele não vai me perdoar de novo".

Sua linha de pensamento foi interrompida pela xícara fumegante que foi depositada em sua frente. Ela ergueu o olhar para conceder à garçonete um novo sorriso duro em forma de agradecimento, mas foi desarmada pelas lágrimas em seus olhos castanhos e pelo riso puro em seus lábios rosados.

"Ela me disse que você viria", a garçonete anunciou, como se fosse óbvio. A jovem franziu a testa em incompreensão e a garçonete fungou, enxugando uma lágrima na manga da camisa e tomando a liberdade de puxar uma cadeira para si. "A cigana. Eu perguntei se deveria lhe procurar, mas ela disse que não... Ela prometeu que você viria!".

A moça correu os olhos pelas feições delicadas do rosto da outra, tentando conter a repulsa pela palavra "cigana". Onde já havia visto aquele nariz de base reta e os olhos levemente puxados nos cantos? Onde já havia visto a sobrancelha direita que tinha a mania de ficar alguns milímetros mais alta que a esquerda quando ela sorria? Foi com um choque que percebeu: No espelho. Todas aquelas características eram suas, traços de seu próprio rosto. Foi já sabendo a resposta que ela abriu a boca seca para perguntar:

"Quem é você?"

E não lhe surpreendeu quando a outra alargou o sorriso, tornando-o compreensivo e receptivo, e respondeu:

"Também é bom te ver, irmã".

Seu peito se preencheu e ela não saberia dizer ao certo de quê. Mas sabia que o encontro com ele estava esquecido - não era importante. A única coisa importante em sua vida naquele minuto era conhecê-la... Conhecer aquela menina que desaparecera vinte anos antes e que ela crescera acreditando estar morta. Conhecer a única no mundo que compartilhava a sua sobrancelha direita.

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